A rua onde nunca morei


Maria Avelina Fuhro Gastal

Da rua onde nunca morei trago lembranças de toda a minha existência. Algumas criadas por vozes inesquecíveis, às vezes críticas, outras, duras, na maioria, amorosas.

Seguíamos, meu irmão e eu, guiados pelas mãos de nossa mãe. 1964, 65 talvez, meu irmão, ao saber que Meneghetti morava no Palácio Piratini, começou a cantarolar, “Meneghetti, ghetti, ghetti, não te mete a fazer revolução...”. Repetia o que ouvia como se fosse uma canção qualquer. Minha mãe sempre contava que voou conosco daquele lugar, explicando que nem tudo que era falado em casa podia ser repetido na rua. Levamos anos para entender tudo que precisava ser sussurrado.

Em 1968 minhas mãos já não estavam presas pelas da minha mãe. Ocupavam-se de livros e cadernos e aprendiam a equilibrar material escolar com a necessidade urgente de segurar a saia pregueada do uniforme que teimava em seguir o vento, erguendo-se, enrolando-se, mostrando mais do que eu aprendi que poderia ser mostrado.

Por oito anos, vencida a subida inclemente da Rua João Manoel, dobrava na rua que reconhecia como meu mundo e seguia até a esquina da Marechal Floriano Peixoto. Ali entrava no universo em que não cabiam meus pais nem meu irmão. No caminho, a cada saída de edifício ou a cada porta aberta das casas que ainda existiam, amigas brotavam. Nunca chegava ou saía sozinha do colégio.

Meneghetti não fez a revolução. Vivemos um golpe militar. Enquanto eu ia e vinha do colégio rindo, brincando, pessoas eram perseguidas, torturadas, mortas. Tempo de censura e silêncios. No Brasil, mas também na minha vida.

Em oito anos se vai da infância à adolescência, das brincadeiras ao conflito, da fantasia à realidade. Não repetimos na rua aquilo que nos fere em casa. Mantemos segredos, ocultamos problemas, mascaramos verdades. E, de resto, como se tudo isso não fosse o bastante, nos apaixonamos.

Nossas mãos voltam a estar em outras, não mais as da mãe. Mãos que seguramos com incerteza pelo medo do abandono que se concretiza. A mesma rua que me viu rindo, brincando, domando a saia ao vento, testemunha minha dor. Na Catedral um espaço de silêncio que me permitia estar sem precisar falar ou dissimular.

Por sete anos troquei a rua onde nunca morei por uma avenida que nunca me fez vibrar. Ônibus lotado, rostos desconhecidos, tudo impessoal, mecânico, tentando dar conta de uma vida que se fazia adulta antes de cicatrizada da adolescência. No final, um canudo, nenhuma perspectiva, filho para criar, boletos para pagar. Em tempos de Anistia ampla geral e irrestrita, eu não sabia como me perdoar.

Retornei à rua onde nunca morei pelo extremo que desconhecia. No Colégio Ernesto Dorneles prestei concurso público. Aprovada, retornei ao coração da rua e lá me mantive por 28 anos.

Voltei a fazer o caminho para o mesmo colégio em que estudei. Não carregava livros. Em minhas mãos, duas mãozinhas que me fizeram mãe. Ao longo dos anos, foi a minha vez de aceitar que elas não estariam nas minhas para sempre.

Das janelas do trabalho ou nos caminhos para chegar a ele, reconheci o pulsar da liberdade nas manifestações populares, nas greves do magistério, do serviço público, nas exigências do MST. Tempos de vitórias, de derrotas, sobretudo, tempos de desacomodação. Sociedade em movimento, mas eu ainda precisaria de mais tempo para me libertar.

Há nove anos passo esporadicamente na rua onde nunca morei, mas, que de alguma forma, foi meu nascedouro, meu berço, minha incubadora. Da última vez, fui fazer prova de vida no banco onde minha aposentadoria é depositada. Enquanto fui espectro, não duvidaram da minha existência, agora que estou viva, preciso provar que não morri.

Morar não é residir. Moramos nos espaços que nos construíram, que nos derrubaram, que nos desafiaram, que nos acolheram. Moramos nas lembranças boas e ruins. Por vezes elas se concentram em um determinado lugar, mas ele não é único. Hoje, moro onde posso me sentir inteira. Moro onde há espaço para a tolerância. Vivo em descompasso com o tempo histórico, em tempos de abertura, me fechei. Neste tempo de retrocesso, avanço.

Talvez eu nunca resida na rua Duque de Caxias, mas nela caminhei, tropecei, caí, chorei, me reergui, sacudi a poeira, refiz o trajeto, inventei atalhos, dominei seus desníveis, me encantei com cores, com olhares, conjuguei o velho com o novo e reordenei meus passos. Nela morei e dela parti para novos caminhos e moradas.


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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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