Invasão de privacidade


Maria Avelina Fuhro Gastal

Tenho pensado em cometer o crime perfeito. Assassinato. Precisa de sangue para dar dramaticidade à situação.

O sucesso encontra-se nos detalhes. Planejamento cuidadoso, antecipação de dificuldades, controle de variáveis compõem o quadro de problemas a ser estudado.

A única ferramenta de planejamento que conheço é a chamada 5W1H, portanto vou me valer dela para destrinchar o desafio.

Primeiro W – What (o quê)

- Assassinato, com arma de fogo, tiro no coração.

Segundo W – Who (quem)

- Homem adulto, escroto.

Não adianta me indicarem potenciais vítimas. Vá que o infeliz seja mesmo assassinado, a sua consciência pese e você me delate. Escolherei aleatoriamente.

Terceiro W – When (quando)
Em uma noite de inverno.

Aceito sugestões de sites confiáveis de previsão do tempo para não correr o risco e agendar para uma noite de ciclone extratropical ou de calor insuportável em pleno inverno, uma vez que vestirei botas, calça, blusão, sobretudo, luvas e gorro pretos, inapropriados para qualquer temperatura acima de 12ºC.

Quarto W – Where (onde)
Em uma região afastada da minha casa ou dos lugares onde comumente circulo.

Quinto W – Why (porque)
Porque eu quero.

H – How – Como

Aqui começam os problemas que não são poucos.

Não tenho arma, não sei atirar, se comprar uma fica registrado o número de série vinculado ao meu nome. Se comprar de bandido, fico vulnerável à chantagem, além de não acreditar que haja bandidos entre as minhas relações. Difícil encontrar um bandido de confiança.

Para escolher a vítima preciso ter conhecimento de seu caráter, sem me aproximar dele. Devo estar atenta aos comentários de conhecidos sobre homens de caráter duvidoso, o que torna a lista extensa. Não é justo escolher um e deixar outro, pior, vivo. Devo escutar os relatos sem tecer opinião nem demonstrar pelas minhas expressões faciais qualquer manifestação de repulsa ao absurdo que estiver sendo contado. Convém comprar um bloco e fazer anotações para eleger a vítima. Como se trata de homem escroto, talvez seja melhor um caderno universitário de 200 folhas que será queimado tão logo defina o alvo. Comprar caderno não levanta suspeitas, lista em computador é rastreável.

Nas noites de inverno há menos pessoas na rua, diminuindo a chance de haver testemunha. Preciso ter certeza de que o alvo não estará em casa, pelo menos, até o início da madrugada. Talvez isso já delimite a vítima entre alcóolatras, jogadores, mulherengos e traidores. No entanto, terei o risco aumentado de ser assaltada ou assassinada antes de executar meu plano. Talvez a roupa escolhida disfarce o fato de eu ser mulher, portanto alvo preferido de ladrões e assassinos. Por outro lado, posso levantar suspeitas e ser parada em uma operação da Brigada. Como justificar a arma? Defesa pessoal, medo de assalto, tentativa de me proteger da violência são bons argumentos. Se aceitos, meu plano terá que ser abortado ou poderei ser listada como suspeita. Ou posso fingir insanidade. Não precisa de muito, às vezes de nada, para que os homens nos definam como loucas.

Quanto maior a distância da minha casa, mais riscos corro. Quanto mais perto, mais chances de ser descoberta. Não posso usar meu carro. Uber registra o destino o que me colocaria na cena do crime, taxi é muito caro, a pé não rola de botas.

Como sair de casa sem ser vigiada? Meu edifício tem um sistema de segurança que registra quem entra, quem sai, a que horas e com quem. Nas ruas há câmeras que captam as imagens das vias. Terei que estar sem celular para que as torres de telefonia móvel não denunciem minha presença no local do crime. Sem celular, teria que voltar a pé. Ida e vinda de botas é impraticável, levar uma sacola com tênis, amadorismo. Além do que, quanto mais caminho com as botas, mais fácil de identificar as ranhuras do solado. Mesmo de gorro, como garantir que nenhum fio de cabelo vai voar da minha cabeça deixando meu DNA próximo ao cadáver.

Complicaram nossa vida. Não posso aprofundar minha pesquisa pela Internet pois meu histórico de navegação fica registrado. Seria muito suspeito receber propagandas de armas ou livros de assassinato, melhor continuar recebendo de cadeiras, esponjas e peseiras.

É tanta câmera, tanto registro de presença, tanto controle da nossa vida, tanto método científico para nos denunciar que mentir, trair ou matar, sem pistas, tornou-se impossível. Só pode ser coisa de comunistas ou do demônio.



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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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