Performance


Maria Avelina Fuhro Gastal

Marta olha o celular. Está pronta há mais de meia hora e nada de Cristina. Vão se atrasar. Já sabe o trânsito pesado e lento que têm pela frente, no mínimo quarenta minutos até lá.

— Cristina, já são quase oito. Sua mãe vai nos matar.

— Tô terminando, já vou.

Marta sabe que o “já vou” tem a duração indefinida, variando de segundos a vários minutos.

Pela sacada entra o barulho do movimento intenso de carros e ônibus nas ruas e o toque irritado nas buzinas por aqueles que as julgam capazes de alterar o ritmo do mundo.

— Estou bem?

Marta arregala um pouco os olhos, junta os lábios em leve aperto e balança a cabeça.

— Essa sua cara não ajuda, Marta. Se você achou tão bom, minha mãe vai implicar.

Marta suspira, enquanto Cristina volta para o quarto. Retorna logo, trocou a saia por uma calça skin preta social e o sapato vermelho meia pata por um peep toe preto, de salto médio.

— Manual de estilo da dona Eunice, “se mostrar o colo, oculte as pernas”
.
— Regra besta. Antes estava ótima, agora está linda. Vamos logo, já estamos pra lá de atrasadas. Não esquece de pegar o presente.

Durante o trajeto, quase não conversam. Marta sabe que é melhor não correr o risco de qualquer mal-entendido. Cristina fica com o pavio muito curto antes destas reuniões familiares. Opta por uma playlist com músicas leves e seguem cantando em dueto os diversos sertanejos universitários, com direito a exageros na interpretação.

O celular de Cristina vibra. Mensagem de dona Eunice, — “Onde vocês andam? A Marta está com você? Não fica chateada, mas o Bruno veio acompanhado. Uma perua.”.

— Minha mãe nervosa com o nosso atraso. Vou colocar a culpa em você.

Marta vira para olhar Cristina, sacode a cabeça. Cristina sorri e pisca o olho. Nada conta sobre a companhia de Bruno.

Não há lugar na rua para estacionar. Marta embica o carro na rampa da garagem, atrás do carro de Carlos, sabe que ele ficará até o fim da festa do pai.

— Um presente só? Devíamos ter comprado presentes separados, Marta. Vai ficar estranho.

— Diz que é seu.

Dona Eunice recebe a filha com censura, — “Está atrasada, seu pai está preocupado”.

Dr. Augusto vem logo atrás, envolve a filha em um abraço, beija o seu rosto três vezes, a afasta segurando-a pelas mãos, — “Linda, minha princesa” — Recebe o abraço de Marta. Cristina entrega o presente. O pai se encanta com a edição especial de Grande Sertão: Veredas. Beija a filha mais duas vezes.

— Vamos lá, filha. Nossos amigos e familiares já estão aqui. Quero que vejam como você está bonita. Vem, Marta.

Cristina encaixa o braço no pai e circula com ele entre os convidados. Em cada roda, beijos, abraços, elogios e sorrisos. Marta procura conhecidos, cumprimenta e se junta aos irmãos e cunhadas de Cristina.

O serviço da recepção não deixa copos vazios nem mãos sem salgados. A música é suave, quase inaudível, só suficiente para embalar as diversas conversas.

Marta tenta manter a atenção nessas conversas, mas seus olhos perseguem Cristina.

Os empratados passam a ser servidos, Cristina senta-se entre as tias enquanto come, sorri, conversa e se diverte. Faz um sinal para que Marta se aproxime. Ela obedece.

— A tia Luísa quer saber quando vou me casar. Diz que se não for logo, vai ficar cada vez mais difícil.

Marta ensaia um sorriso e nada diz. A tia volta ao assunto e pergunta à Marta:

— Qual a sua idade?

Cristina responde por Marta.

— Trinta e quatro.

— E ainda solteira? — pergunta a tia. Fala para esta menina como fica mais difícil arranjar alguém para casar depois dos trinta.

— Calma, tia. Ainda tenho dois anos para resolver esse problema. Até lá, damos um jeito, não é Marta?

A tia aponta o dedo indicador para Marta e dita ordem:

— Faz esta menina se aquietar e arranjar marido. Boas amigas fazem isso.

Cristina ri, bate na perna da tia, e diz:

— Vou sair daqui de fininho antes que vocês escolham um marido pra mim.

Marta ainda ouve as súplicas da tia para que ela convença Cristina a tomar jeito. Aproveita um momento de respiro entre as palavras, pede licença e retorna para o grupo dos irmãos e cunhadas.

Cristina chega pouco depois. Todos reclamam da sua demora. Carlos bate com a mão no assento do sofá, no espaço entre ele e a esposa, ela se esgueira e senta ali. Carlos passa o braço sobre os ombros dela e a puxa para perto. A conversa gira em torno da namorada de Bruno. Adjetivos não são poupados, perua, brega, loira oxigenada. Marta fica sabendo da mensagem de dona Eunice. Todos acusam Cristina de ter provocado desespero em Bruno, qualquer uma serviria para trazer à festa e fazer ciúmes. Cristina ri. Ciúmes? Os irmãos ironizam a fixação de Bruno nela, as cunhadas defendem a rejeição dela. Marta só ouve.

A música para, Dr. Augusto e dona Eunice chamam os filhos para o brinde e os parabéns. Ficam cercados por eles. Pedem que as noras se aproximem. Elas levantam, e vão ao encontro de seus pares. Cristina olha para Marta e ela entende que deve ficar entre os demais convidados.

Já é tarde quando Cristina e Marta deixam a festa. Nenhuma música, cantoria ou conversa no caminho de volta. Sem o trânsito, em menos de vinte minutos estão em casa. No elevador, Cristina encosta a cabeça no ombro de Marta e diz:

— Quando será que eles vão perceber que já encontrei a pessoa com quem quero casar?

Marta fecha os olhos e nada diz.


Conto publicado no livro "Ecos e sussurros", Editora Metamorfose, 2020


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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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