Importam?


Maria Avelina Fuhro Gastal

Os nomes Luiz Gama e André Rebouças remetem você a algum movimento da história do nosso país? E a camélia branca era símbolo do que? Cultivada onde? Usada por quem?

A data 14 de novembro de 1844 fez parte das datas históricas que você aprendeu na escola? Você comemora o 20 de setembro, mas desconhece ou ignora o 20 de novembro?

Aprendeu que Zumbi liderou um movimento para desestabilizar a ordem estabelecida?

A história das pessoas de pele preta é apagada ou distorcida no Brasil. São colocadas à parte do processo de nossa formação social, econômica, cultural e ideológica. O apagamento contínuo estabelece em nós o racismo estrutural.

Negamos o racismo com frases que se repetem há décadas: “eu até tenho amigos negros”, “sempre tratei os negros como iguais”, “eu nunca fui racista, mas os negros têm sido racistas contra nós e muito agressivos”, “vou me pintar de preto para garantir as vagas reservadas só em função da cor da pele”. Você já disse que até tem amigos brancos, que os trata como iguais? Já reconheceu a agressividade intrínseca na sociedade brasileira contra as pessoas de pele preta ou pensa que é tudo “mimimi”? Percebe que as vagas são na sua esmagadora maioria para pessoas brancas?

Os negros foram trazidos como mercadoria. Sem nome, sem passado, esvaziados de qualquer aspecto de identidade humana. Nossa bondade humana e fé cristã não permite que açoitemos, matemos, escravizemos iguais. Então, estabelecemos a diferença. Denominamos de escravos e não de escravizados, ignoramos o nome que traziam, impingimos nomes estabelecidos por proprietários da mercadoria.

A escravidão no Brasil atendeu a interesses econômicos. Eles ainda ditam as regras na estrutura social. Não é verdade que poderemos lutar para construir uma sociedade mais justa enquanto o capital for mais importante do que vidas. Não há recursos que garantam igualdade. Para cada roupa de grife, cada apartamento ou casa de mais de um milhão de reais, cada item de consumo em lojas alto padrão precisa-se de um contingente de mão-de-obra barata, com alta carga horária de trabalho, paga com salários que não garantem nem mesmo as condições básicas de vida humana, vivendo na periferia das cidades.

No dia 19, dois seguranças de uma empresa terceirizada, contratada pelo Carrefour, assassinaram João Alberto Silveira Freitas. Sim, temos que dizer o nome, sempre. O nome nos torna únicos, nos faz indivíduos. Dizer que um homem negro, de 40 anos, foi espancado até a morte por seguranças de um supermercado após desentendimento com uma funcionária, desumaniza a vítima, rouba dela o pertencimento a uma família, a história da sua vida, o lugar social que ocupa.

Alguns negam a motivação racial para o crime. Se vivemos o racismo estrutural, não precisamos gritar “negro”, “macaco” enquanto espancamos. Ter a pele preta transforma todos em alvos de agressões, atraques, violência. Sempre que a vítima for preta, o componente de motivação racial está presente.

Os seguranças têm de ser julgados. E quem mais? Qual a política estabelecida pelas empresas contratantes no tratamento de questões envolvendo os clientes? Há diferença de tratamento dependendo da cor da pele e da suposta classe social? Qual a política de contratação da empresa? Quais posições são ocupadas por pessoas de pele preta? A empresa está alinhada a que pensamento político? O que é defendido por esse pensamento? Há compromisso mútuo em função de contribuições de campanha ou de apoio a reformas estruturais que beneficiem o capital? E nós? Qual a motivação real do nosso voto? Que discursos condizem com nossas crenças e com aquilo que escondemos de todos? Conseguimos ver nas pessoas de pele preta alguém além de um possível assaltante? Buscamos nas atitudes deles a justificativa para nossa violência?

Vidas negras importam? Tenho dúvidas. Se importassem, não chamaríamos de vândalos aqueles que apedrejam, incendeiam estabelecimentos da marca envolvida no assassinato. Entenderíamos como um grito de revolta. Um basta. Estamos muito perto de construir, mais uma vez, a partir da reação ao crime, a narrativa de que a violência é negra.

“Enegrecemos” a pobreza, repetimos slogans, omitimos a raiz econômica histórica e ideológica do racismo para mudar sem transformar. A mudança buscada é para garantir a tranquilidade branca. O assassinato de João Alberto Silveira Freitas expõe a perversidade social. Fragiliza a nossa paz branca, que no fim é o que nos interessa. Se vidas negras importam, realmente, reconheçamos que há, sim, diferença; criada, estabelecida, fomentada e mantida pela nossa posição social e branquitude.

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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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