Dias perfeitos


Maria Avelina Fuhro Gastal

Não costumo escrever sobre filmes. Embora ame cinema, há pessoas qualificadas para avaliar e criticar filmes com muito mais propriedade do que eu.

Para decepção da minha família, nunca lembro do nome do diretor, o que torna impossível fazer uma crítica que contemple a forma de expressão que caracteriza, ou não, o seu trabalho.

Sobre Dias Perfeitos preciso falar. Não sobre o filme, mas sobre tudo que provocou em mim.

Comparo o filme a uma crônica muito bem escrita. Parte do cotidiano, parece que não vai a lugar nenhum e, ao fim, provoca um tumulto em nossos sentimentos.

Durante 123 minutos acompanhamos os dias de Hirayama. Mesmo sem o glamour de exercer uma profissão considerada de sucesso, ele cuida do trabalho com esmero. Limpa, diariamente, os banheiros públicos de Tóquio. Muitos de nós não limpam nem o próprio banheiro.

Na rotina dos dias, o protagonista segue um roteiro que parece engessado, acorda, organiza a cama, escova os dentes, compra o café em uma máquina, entra na van com os equipamentos e produtos necessários para exercer seu trabalho, escolhe uma fita cassete para ouvir no carro e parte. Nas lacunas do trivial, percebe as luzes e sombras do dia, ouve as músicas que escolhe, observa os detalhes do caminho. Nos intervalos, capta imagens da vida ao seu redor e as registra em sua máquina fotográfica para posterior revelação. Finaliza os dias regando as plantas e lendo. Não tem o olhar voltado para si próprio, apenas. Enxerga o outro e o respeita e acolhe, a ponto de jogar o “jogo da velha” com um desconhecido, nunca encontrado, mas que deixa seu rastro de solidão em um papelzinho dentro de um dos banheiros públicos, só perceptível para quem se atenta aos detalhes daquilo que parece sempre igual.

Nossos dias se repetem. Ignoramos o quanto são especiais. Ficamos cegos aos detalhes, deixamos de perceber as nuances de cores, as mudanças no caminho, as possibilidades de encantamento com aquilo que nos cerca. Desqualificamos prazeres cotidianos. Música, livros, filmes, refeições, trabalho, compromissos ficam impregnados com a nossa insatisfação.

Só entendemos como perfeitos os dias que nos trazem alegrias, sucesso, reconhecimento. Eles sempre serão em número menor do que os demais dias. Um encontro, um reencontro, uma vitória, uma viagem, uma surpresa, uma declaração de amor, uma promoção, um elogio são momentos especiais que deveriam se somar aos nossos dias perfeitos, mas nunca os definir. Esperar pelo excepcional para considerar um dia perfeito é apostar na decepção diária.

Dias perfeitos acolhem o que vivemos no aqui e agora, faz da nossa vida uma experiência em que sensações e sentidos estão conectados a detalhes muitas vezes ignorados.

Acordar para a vida a cada manhã, ser capaz de executar tarefas diárias, poder escolher o que ouvir, o que ler, o que fazer, ver as plantas crescerem e florescerem, admirar ac cores dos dias e os céus das noites, perceber o que nos cerca, estar abertos ao que nos encanta, dormir sem sobressaltos deveria nos ser suficiente para entendermos que vivemos dias perfeitos. Neles haverá espaço para momentos especiais e inesquecíveis e estaremos mais leves para vivê-los.

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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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