O avesso da Educação


Maria Avelina Fuhro Gastal


Era meado dos anos 70 quando eu finalizava o, então, colegial, correspondente ao atual Ensino Médio.

A prova de Biologia tinha apenas uma questão. Não lembro exatamente do enunciado, mas era algo como: uma pessoa ligada a uma máquina que ainda mantinha seus batimentos cardíacos poderia ser considerada morta em que momento? Não havia reposta certa, o que importava era o argumento usado para validar a nossa opinião. As provas do professor Ivan eram assim. Tínhamos que transformar o aprendizado, utilizar os conteúdos como ferramentas de expansão do conhecimento. Além de saber, tínhamos que compreender. Da compreensão vinha a possibilidade de questionar e argumentar.

No mesmo colégio a leitura de obras literárias era acompanhada de amplo debate. Lembro, ainda, de uma pergunta feita pela Professora Luíza Mano sobre Dom Casmurro: e se Capitu contasse a história, teríamos a mesma visão? Décadas depois essa pergunta encontrou sua resposta quando passei a estudar sobre narradores e ponto de vista da narrativa. A semente estava em mim, quando madura, germinou. A mesma professora nos presenteou na formatura com o livro de Clarice Lispector, Uma Aprendizagem ou O livro dos Prazeres.

Fico pensando como esses dois professores tratariam a leitura de O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório.

Em primeiro lugar, jamais o censurariam. Professores que estimulam o debate e o pensamento crítico respeitam a capacidade dos alunos em avaliar o que leem e em aprenderem a partir de sua própria realidade. Censura não é proteção, é desqualificação da capacidade intelectual e tentativa de imposição de valores arbitrários que desconsidera o outro como capaz de construir e interpretar sua própria realidade.

Talvez o professor Ivan demonstrasse nas aulas de genética que todos nós somos diferentes e, portanto, únicos. Não há combinação de genes que determine a superioridade de uma raça ou gênero. Assim, o ódio ao outro, manifestado em atitudes racistas, misóginas ou de qualquer outra natureza só representa a essência de um comportamento social e cultural, que reflete uma estrutura de sociedade intolerante, sem respaldo na Ciência.

A professora Luíza, se tratasse da questão de “palavras de baixo calão”, questionaria a adequação da linguagem à estrutura narrativa, à diferenciação de vozes das personagens. Por certo, enfrentaria a forma como a violência social e a truculência policial são apresentadas no livro. Abordaria, também, os aspectos do luto, da permanência de mágoas e culpas que transbordam frente à morte. Não fugiria à discussão sobre a valorização dos professores e, por conseguinte, da Educação, enfrentando a baixa qualidade de ensino somada à necessidade de acúmulo de horas de trabalho por parte dos professores, sem a devida remuneração por trabalho em classe e extraclasse.

Outros professores que tive, como a professora Tania, de História, não perderiam a oportunidade de aliar o cumprimento da grade curricular aos temas trazidos na narrativa. A abolição da escravatura seria abordada em seus aspectos políticos, em seu total desamparo aos escravizados libertos, sedimentando uma sociedade desigual.

Tive a sorte de encontrar educadores na minha vida escolar. Quase meio século se passou e eles ainda me são presentes, incentivando o pensamento crítico e a opção pelo conhecimento fundamentado.

Nada sei sobre a diretora de escola que tentou censurar a leitura do livro de Tenório nas escolas estaduais de Santa Cruz do Sul. Desconheço sua formação, posição ideológica, crença religiosa. Sabidamente, Santa Cruz do Sul é um município de colonização alemã, com alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Em 2010, 86,12% da população era de brancos; pretos e pardos, 13,75%, e 0,37% indígenas e amarelos. Não creio que tenha havido muita mudança nesses percentuais. Ao visitá-la, vemos uma cidade branca, com forte influência da colonização alemã e enaltecimento da Oktoberfest. Como tantas outras cidades, não há vestígios da população de pretos e pobres, a não ser servindo turistas, políticos, empresários e diretoras brancas de escolas.

Temos enfrentado nos últimos anos manifestações constantes respaldadas em preconceitos. Questões de crenças religiosas tentando se sobrepor às leis e aos direitos dos cidadãos, ignorando a premissa de um Estado laico. Estamos cansados, desesperançosos, mas não podemos desistir. Se opor ao absurdo é tarefa constante.

Tenho uma certeza. Há algo que não mudou. Para a adolescente que fui e para os adolescentes de hoje basta proibir para transformar algo em objeto de desejo. Tenório, e tantos outros, serão lidos por eles.






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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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