Magia


Maria Avelina Fuhro Gastal

O elefante quase esbarra na cadeira de balanço. A tartaruga esconde a cabeça para não presenciar o acidente. Perde a oportunidade de ver o barco à vela que passa apressado ao seu lado. De longe, um homem de perfil está tão sério que mesmo em meia-face dá para perceber seu mau humor. Pronto, o azedume toma conta do céu. Vira um mata-borrão que torna tudo uma massa cinzenta. Labaredas de fogo atravessam o cinza. Mais um pouco e um ronco de fera. Hora de fechar a janela e buscar esconderijo.

Eu me escondo no castelo, minha irmã na casa de chocolate e nosso irmão na oca de índio. Ocupamos o mesmo espaço, com lugares diversos. Dentro, vivemos como vivem a rainha, a Maria e o Touro Sentado. No fundo todos estamos com medo da mudança que São Pedro faz. Não para de arrastar móveis, cada vez mais pesados. Os barulhos do mundo lá de fora nos faz aceitar a convivência no espaço castelo/casa de chocolate/oca como o mais seguro para a situação.

Por sorte, temos folhas de árvores para picar em um ensopado, argila para brigadeiros e água morna para sopa de crepom colorido. Touro Sentado aprende a usar a xícara com a rainha e, de tão feliz, convida Maria para a dança da chuva. Ela prefere a do sol.

Hora da aula. A mais velha ensina, os menores aprendem. Hoje a letra A e o número 1. Não há pressa. Letras e números não faltam para o resto da vida. Desenho livre, a hora é agora. Riscos viram aviões, cores são paisagens, palitos e bolas, uma multidão.

Na infância o mundo se constrói na imaginação, ganha as formas desenhadas pelas nuvens, o espaço habitado por diferentes, o destemor da criatividade.

A magia é quebrada pelo nosso olhar de censura, de indiferença, de crítica. Pela nossa voz áspera, pelo grito incontrolado, pela mão que agride. Pela fome, pelo frio, pelo abandono. Por uma dose a mais de uísque ou cachaça, por uma carreira de pó. Pela nossa falta de tempo ou de paciência. Pelas horas de trabalho, pela necessidade de ter sempre mais, pela insatisfação com o que somos.

Em pequenas doses de incompreensão, solapamos a inocência e os sonhos muito antes que a vida adulta venha a fazer. Matamos a infância, transformamos a criança em pessoas como nós. Amarguradas, tristes, solitárias e insatisfeitas.

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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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