Ao avesso do tempo


Maria Avelina Fuhro Gastal

Com cerca de dois anos, envelheci.

Nenhum cabelo grisalho, nenhuma ruga ou flacidez, apenas um emudecimento que ocultava vontades, mágoas, inseguranças. Palavras continuaram a ser emitidas, desde que obedecessem às regras do cotidiano.

Não lembro da menina que faz parte da história familiar como saliente, desinibida. Reconheço a introvertida, cerceada por um retraimento que, por vezes, insiste em manter seu espaço.

No final da adolescência e início da vida adulta me tornei matrona e me perdi em um lapso de duas décadas.

Bar Ocidente, Nelson Coelho de Castro, Nei Lisboa, Bebeto Alves chegavam a mim através do meu irmão. Eu não fiz parte daquela Porto Alegre jovem dos anos oitenta.

Como uma senhora recatada, liberava meus desejos e angústias ouvindo músicas cantadas por mulheres. Mais do que cantadas, interpretadas. Elis e Bethania alinhavam versos, melodia, sentimentos e libertavam silêncios. Simone me gritava para “Começar de novo”. E Gal. Misto de ternura e tigresa, força pulsante de vida, cantava a dor e a alegria, falava de uma “Festa do interior” que alimentava minha vontade de encontrar aquelas fagulhas que faziam brilhar o mundo.

Na mesma semana, Bebeto Alves e Gal Costa se foram. A morte dele anuncia que o morrer ronda minha geração, a dela acende a lembrança de silêncios rompidos em versos, por vezes, gritados.

Por sorte, há muito cansei da velhice e rejuvenesci. Com cabelos grisalhos, rugas e flacidez, mas com uma imensa alegria de viver. Há um pouco de cada um deles naquela que me tornei.

Notas em melodias, palavras em versos e prosa, passos em cadência, tintas em telas e espaços, argila em formas moldadas não se ocupam do concreto. Trazem em si emoções e possibilidades por tantas vezes adormecidas ou negadas. Às vezes, nelas encontramos a chave que nem sabíamos ter perdido.

A arte desconhece a medida do tempo, permanece além do artista. O nosso tempo é efêmero. Se envelheci na infância, quero morrer sendo criança. Para isso, vou cantar, dançar, pintar, bordar, rir e sonhar. Hoje, agora. O amanhã não há.

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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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